Ele
poderia ter passado o resto da vida exatamente ali, esparramado na autopiedade.
Lustrando as lembranças difíceis com zelo de quem guarda relíquias. Fazendo
contas para medir o amor que ofereceu e o amor recebido. Atualizando todo dia a
estatística das perdas e insucessos vividos. Esmiuçando, incansável, a história
de cada traição sofrida. Envenenando-se com a substância tóxica da culpa.
Morrendo de fome, com recursos para banquete, o medo desmatando lentamente
territórios arborizados da alma, secando rios de delícias, amordaçando
passarinhos, desmentindo flores.
Ele
poderia ter passado o resto da vida exatamente ali, esparramado na autopiedade.
Onde não corria vento, onde não batia sol, onde toda muda de alegria morria
desidratada, onde só brotava pé de mágoa. Poderia, não porque ali fosse lugar
aprazível, mas porque ali lhe parecia seguro. As insatisfações organizadamente
acomodadas, os culpados escolhidos, as desculpas em dia, a escuta blindada para
não ver o quanto o cansaço de toda aquela insipidez embotava o viço dos passos.
Desmanchava estrelas. Esgarçava devagarinho o frágil tecido da paz. Ali, era
mais fácil não arriscar movimento. Ali, era mais fácil esquecer que podia fazer
escolhas. Ali, era mais fácil esquecer-se.
Mas a
alma; suplicando por um Deus; sábia e habilidosa bordadeira de pretextos,
quando encontrou brecha, arrumou um jeito de alumiar aquele lugar. Foi então
que ele conseguiu enxergar exatamente onde estava com nitidez reveladora e
também desconcertante. Fazia tempo, desconhecia o paradeiro do brilho dos seus
olhos sem ter feito nenhum movimento para trazê-lo de volta. Estava
profundamente infeliz e agiu durante temporadas como se isso não lhe dissesse
respeito. Não fazia ideia da vez mais recente em que experimentara satisfação
autêntica e até aquele momento sequer havia notado. Deu tanto “poder” aos outros para interferirem na sua alegria que esvaziara o
próprio até a exaustão. Afastou-se tanto do coração e do seu desejo que
encolhera-se, inerte, diante de cada golpe sofrido sem contar com a
própria proteção. Esforçou-se de tal forma para se tornar
interessante para o outro, que perdera o interesse por si mesmo. Os
sucessivos desapontamentos tentaram lhe dizer que não era
merecedor de coisas que faziam toda diferença, e ele acreditou.
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